14 de abril de 2024

A invasão do Gibi

 




Criada em 1905, a revista em quadrinhos “O Tico-Tico”,
pioneira no Brasil, reinava desde o primeiro número com sucesso absoluto entre crianças e adultos, com seus personagens e aventuras tipicamente brasileiros, criados por artistas nacionais, com poucas exceções de estrangeiros que apareciam como convidados em suas páginas. Sem nenhum rival à altura, “O Tico-Tico” seguia rentável e imbatível até a década de 1930, quando outros jornais e revistas decidiram investir no público infantojuvenil. Foi então que “O Tico-Tico” começou a perder público e as dificuldades financeiras foram se agravando, nos anos e décadas seguintes, com a invasão norte-americana e a conquista do território nacional pelos personagens Disney e as aventuras de heróis e super-heróis da DC Comics e da Marvel.

A batalha foi violenta: em pouco tempo, a maioria dos personagens nacionais deixaria de ter histórias inéditas e passaria a ser apenas lembranças, coisa do passado, ou apenas exceções, como aconteceria com o surgimento isolado de personagens de artistas como Ziraldo ou Maurício de Souza, a partir da década de 1960. Um capítulo importante da invasão dos quadrinhos norte-americanos aconteceria às vésperas da Segunda Guerra Mundial: em abril de 1939, a editora O Globo, um setor das Organizações Globo, grande conglomerado de jornais, revistas e rádios, já naquela época sob o comando de Roberto Marinho (1904-2003), lançou uma revista infantojuvenil semanal chamada “Gibi” que foi um sucesso imediato e a primeira grande concorrente a desbancar a liderança de “O Tico-Tico” (Veja também: Semióticas – Revistinha de vovô).










A invasão do Gibi: no alto da página, o mascote,
personagem símbolo da revista "Gibi", um estereótipo
racista e discriminatório que estava presente em todas
as edições. Acima, um anúncio de vendas da revista
por reembolso postal, expediente que garantia à
Editora O Globo várias reimpressões com milhares de
exemplares; e a apresentação do Spirit, criação de
Will Eisner, um dos personagens de grande
sucesso na trajetória da "Gibi".

Abaixo, O Fantasma na capa e nas páginas
da "Gibi": personagem criado por Lee Falk
(também criador de Mandrake, o mágico) e pelo
desenhista Ray Moore, foi um dos grandes
sucessos entre os leitores da revista.
Também abaixo, a ilustração da última página
da última edição semanal de "Gibi" em 1975












Além de ser uma porta de entrada para a invasão dos heróis e super-heróis dos quadrinhos norte-americanos, a revista lançada pelo Grupo Globo também fazia seu marketing reforçando um preconceito racial: "Gibi”, desde o seu número de estreia, trazia como símbolo, na capa, a referência racista de um personagem em desenho estereotipado retratando um menino negro e pobre. Na época, a palavra “gibi” era uma expressão francamente racista, muito usada como xingamento e como ofensa, para designar “menino negro”, “negrinho ladrão” ou “negro feio e grosseiro”. Mas o preconceito racial foi normalizado em pouco tempo: o sucesso da publicação do Grupo Globo foi tanto que a palavra “gibi” começou a perder seu caráter racista, pejorativo e discriminatório, para ganhar no senso comum um novo significado como revista de histórias em quadrinhos de heróis e super-heróis.



Desembarque no Brasil



A grande variedade de personagens norte-americanos dos quadrinhos, de vários autores e em vários gêneros, começou seu desembarque maciço no Brasil pelas páginas da revista “Gibi”, sem enfrentar nenhuma resistência nem do público nem dos criadores de quadrinhos brasileiros. Entre os invasores estavam Flash Gordon, Charlie Chan, Fantasma, Mandrake, Spirit, Capitão Marvel, Namor, Tocha Humana, Cavaleiro Negro, Agente X-9, Ferdinando, Brucutu, Popeye e muitos outros. Impressa em papel jornal, sempre alternando páginas coloridas, páginas em preto e branco e páginas em duas ou três cores, a revista ganharia vários formatos desde o lançamento. O formato principal, conhecido como série original, circulou entre 1939 e 1954, tendo 1842 edições.









A invasão do Gibi: no alto, a apresentação do herói
Flash Gordon, criação de Alex Raymond, na capa da
revista "Gibi", que também mostrava uma seleção
de outros personagens que estavam na edição.
Acima, o super-herói Capitão Marvel, criado pelo
roteirista Bill Parker e pelo desenhista C.C. Beck,
na capa da edição mensal da revista "Gibi".

Abaixo, edição da "Gibi Mensal" de janeiro de 1946
trazendo na capa a estreia de um novo herói em luta
contra os japoneses, Namor, o Príncipe Submarino,
criado pelo escritor e roteirista Bill Everett; duas capas
da "Gibi" em 1940; e uma amostra de suas páginas
com impressão no padrão de duas cores






                  

         

Em paralelo à série original foram lançadas, também com grande sucesso de vendas, “Gibi Mensal”, que circulou de 1941 a 1963, com 271 números; “Gibi Semanal”, de 1974 a 1975, com 40 edições; e lançamentos especiais, com edições não consecutivas entre 1974 e 1985, além de 12 edições de “Gibi” para colecionadores, lançadas no começo dos anos 1990. Cada tiragem das revistas tinha números altos, que variavam entre 50 mil e 100 mil exemplares, algumas vezes com reimpressões para atender às encomendas de vendas, sendo que o motivo principal das interrupções nas edições de cada formato não foram as quedas de vendas, mas sim os novos lançamentos: novas revistas que foram criadas para trazer exclusivamente apenas personagens específicos.

As revistas em quadrinhos, com a "Gibi" em primeiro plano, ganhavam cada vez mais leitores no Brasil. O sucesso de vendas era tanto que, em 1952, o Grupo Globo fundou uma nova empresa, a Rio Gráfica Editora, para dar conta da impressão das edições da "Gibi", que continuava a publicar suas coletâneas com vários personagens na mesma revista, em edições semanais e mensais, e dos novos lançamentos em quadrinhos, com novas revistas dedicadas cada uma a um só personagem. No começo dos anos 1990, a Rio Gráfica Editora seria modernizada e receberia o nome de Editora Globo. 

“Gibi” foi o maior sucesso durante anos, mas não foi um caso único. Desde o começo da década de 1930 surgiram outras revistas em quadrinhos no Brasil e também páginas inteiras de jornais dedicadas ao formato em tirinhas, acompanhando as novidades editoriais que faziam sucesso no mercado dos Estados Unidos e de outros países. O jornalista e editor russo, naturalizado brasileiro, Adolfo Aizen (1904-1991), foi um dos primeiros a apostar nas publicações exclusivas de quadrinhos de origem norte-americana. Em uma temporada nos Estados Unidos, em 1931, Aizen conheceu a variedade e o sucesso comercial das revistas em quadrinhos e também das páginas de tirinhas nos jornais, além dos suplementos temáticos semanais, dedicados ao público feminino e infantojuvenil, que vinham como cadernos encartados nas edições. De volta ao Brasil, Aizen ofereceu um projeto sobre a novidade para seu chefe nas redações de jornais e revistas, Roberto Marinho, que no primeiro momento descartou a proposta por não acreditar no potencial de vendas.








A invasão do Gibi: no alto, Adolfo Aizen, um dos
pioneiros na publicação de histórias em quadrinhos
importadas dos Estados Unidos. Acima, Aizen
na década de 1950 em um jantar comemorativo
com seu principal concorrente, Roberto Marinho.

Abaixo, capa de uma edição da revista "Gibi"
de 1940 que apresentava pela primeira vez
um personagem chamado O Pato Donald









Guerra dos Gibis


Aizen, então, emplacou seu projeto de quadrinhos junto à concorrência, no jornal carioca A Nação. O projeto de Aizen foi publicado no formato do Suplemento Juvenil, semanal, com sucesso imediato, trazendo personagens na época muito populares nos Estados Unidos e licenciados pela King Features Syndicate, incluindo histórias do Super-Homem, Tarzan, Pinduca, Betty Boop, Os Sobrinhos do Capitão e as primeiras produções dos estúdios de Walt Disney (Veja também: Semióticas– Estratégias do Zé Carioca) . Segundo informa o pesquisador Gonçalo Júnior, no livro “A Guerra dos Gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos (1933-1964)”, lançado pela Companhia das Letras em 2004, o sucesso foi tanto que, nos dias de publicação do Suplemento Juvenil, as vendas do jornal A Nação triplicavam.

O sucesso do Suplemento Juvenil levaria Aizen a fundar sua própria editora especializada em quadrinhos, registrada como Grande Consórcio de Suplementos Nacionais. As publicações da editora de Aizen se tornando cada vez mais populares foram um alerta para a concorrência, levando outros empresários à criação de projetos similares, também na década de 1930, sempre com conteúdo importado dos Estados Unidos. Entre outros lançamentos que fizeram sucesso neste período estavam a Gazeta Juvenil, encarte tabloide do jornal A Gazeta de São Paulo, e o Mundo Infantil, da Editora Vecchi do Rio de Janeiro. Roberto Marinho também copiou o projeto de seu ex-funcionário Aizen, lançando em 1937 O Globo Juvenil, suplemento semanal que era encartado no jornal O Globo. A recepção favorável do suplemento com histórias em quadrinhos e o aumento considerável nas vendas levou Marinho à criação da revista “Gibi” em 1939.








A invasão do Gibi: no alto, Mandrake, criação de
Lee Falk, na capa do Suplemento Juvenil em
agosto de 1937. Acima, O Pato Donald na capa
da última edição do Suplemento Juvenil em 1945.
Abaixo, Superman na revista da
EBAL





Ao fim da Segunda Guerra, o mercado de jornais e revistas alcançou uma considerável expansão no Brasil, multiplicando os parques gráficos nas décadas seguintes. A concorrência se tornaria mais acirrada e levaria Adolfo Aizen a fundar, em 1945 uma nova editora especializada em revistas infantojuvenis, a Editora Brasil-América Limitada (EBAL), com publicações específicas para cada personagem e cada herói, com grande destaque para o lançamento da primeira revista exclusiva para o primeiro e mais famoso super-herói, o “Superman” (Veja também: Semióticas – Um novo Superman)
. Um novo capítulo da concorrência viria em 1950, com a criação da revista “O Pato Donald”, primeiro lançamento da Editora Abril fundada por Victor Civita.

Nascido em Nova York e descendente de judeus italianos, Victor Civita começou em sociedade com seu irmão, Cesar Civita, que também havia fundado na Argentina uma Editora Abril, na década anterior. Instalando sua editora em São Paulo, Victor Civita se naturalizou brasileiro e, a partir do licenciamento para todos os personagens dos Estúdios Disney,
criou um grande império editorial (Veja também: Semióticas – Páginas de Realidade)
com dezenas de revistas, voltadas para diversos segmentos do público, passando a disputar, em pouco tempo, a liderança de vendas no mercado nacional com as Organizações Globo de Roberto Marinho e com os Diários Associados de Assis Chateaubriand, um conglomerado que controlava a edição de jornais em vários estados do Brasil. Chateaubriand também era o proprietário da revista O Cruzeiro, fenômeno editorial que liderou o mercado brasileiro de revistas de notícias e variedades desde seu lançamento, em 1928, até encerrar as edições no começo da década de 1970. O fim da revista O Cruzeiro foi ocasionado pela falência do império dos Diários Associados, que ficou acéfalo depois da morte de Chateubriand em 1968 (Veja também: Semióticas – O Cruzeiro nos bastidores)









A invasão do Gibi: no alto, a capa da primeira
edição da revista Gibi com a apresentação de
Charlie Chan, o detetive de origem chinesa,
criação de Earl Derr Biggers. Acima, o anúncio
do lançamento da "Gibi" na primeira página do
jornal O Globo em 12 de abril de 1939.
Abaixo: uma capa de "Gibi" em tempos de
guerra, em 5 de janeiro de 1945







Ausência de regulamentação


A hegemonia norte-americana nas histórias e revistas em quadrinhos não se deu apenas por alguma qualidade superior ou pelo estilo deste ou daquele criador, como poderia supor o leitor mais ingênuo: a grande vantagem que as empresas norte-americanas tiveram foi resultado de uma total ausência de regulamentação para sua entrada no Brasil, onde puderam atuar livres de impostos e sem a contrapartida de nenhum investimento, porque seus custos de produção haviam sido cobertos pelo próprio consumo interno em seu país de origem. Diante do público brasileiro, o que estava em jogo era o controle do mercado, a exploração comercial predatória, motivo pelo qual o produto norte-americano chegava com custos muito baixos, com o objetivo violento de eliminar qualquer resistência e toda a concorrência local, com preços muito mais acessíveis do que o valor real que deveria ser pago ou investido para manter a produção nacional. No universo das histórias em quadrinhos, os artifícios do monopólio da produção econômica e da produção cultural tiveram uma total equivalência.







A invasão do Gibi: acima, a capa do número 2 da
revista "Gibi" em 1939. Abaixo, capa do número 47,
também de 1939, e uma edição especial de 1963
com seleção de histórias de Águia Negra,
Capitão César, O Sombra e Robin Hood
.

Também abaixo, trabalhador na expedição da
revista "Gibi", na sede de O Globo, em 1948,
e uma capa da edição semanal
lançada em 1974









Os quadrinhos e toda a produção cultural estrangeira, conforme destaca Julia Falivene Alves em “A invasão cultural norte-americana” (Editora Moderna, 2012), chegavam e eram amplamente consumidos porque seus preços eram bem mais acessíveis do que aquele que qualquer editor teria de pagar aos similares brasileiros que fossem criados pelos artistas nacionais. Segundo a historiadora, isso naturalmente acontecia (e acontece) porque a indústria norte-americana conta com a mais completa benevolência das autoridades locais, em vários níveis, e com a ausência de regulamentação para tais transações comerciais no Brasil – além de deter, na maioria das vezes, equipamentos e tecnologias mais avançadas, maior disponibilidade de capital e mercado consumidor mais amplo do que os pequenos e independentes produtores nacionais do Brasil e dos países periféricos.

Ao considerar a invasão norte-americana, tanto a que se deu pelas histórias em quadrinhos e por outras mídias, no decorrer do século 20, como os cenários de maior complexidade da internet e das plataformas de redes sociais na atualidade, é de fundamental importância ressaltar os aspectos políticos e ideológicos, sejam eles diretos, explícitos, ou dissimulados e subliminares. Nenhum leitor ou espectador pode ser ingênuo em relação às intenções em jogo, uma vez que os personagens norte-americanos, sem exceção, não apenas os heróis e super-heróis envolvidos em tramas de guerra e dominação imperialista, mas também os nada ingênuos personagens Disney e equivalentes, promovem, de forma permanente, processos de “lavagem cerebral” no público – em estratégias premeditadas que, com o passar do tempo, passaram a ser vistas com naturalidade. Enquanto seus produtores e o país ao qual pertencem obtêm lucros imensos e garantem sua hegemonia no mercado internacional de produtos culturais, os selvagens pacíficos do Terceiro Mundo, em troca de alguma diversão, continuam “pagando o pato”.


por José Antônio Orlando.

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. A invasão do Gibi. In: Blog Semióticas, 14 de abril de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/04/a-invasao-do-gibi.html (acessado em .../.../…).

 

 
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